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Bento Rodrigues despede-se de colega da SIC

A Televisão
8 min leitura

No dia em que assinalou o Dia Mundial da Televisão, a SIC perdeu um dos seus profissionais. O repórter de imagem Fernando Faria. Bento Rodrigues recorda história vividas com o colega.

Mais focado em reportagens na área da informação, o profissional esteve mais de duas décadas ligado à estação de Paço de Arcos. Fernando Faria morreu este sábado, dia 21, em Pemba, Moçambique.

Bento Rodrigues recordou alguns dos momentos vividos com o colega:

““Diz-me que gravaste isto, ca…….”, gritei ainda a escorrer adrenalina.
O Faria, com a calma que por vezes desesperava um repórter, sorriu com aquele sorriso que desarmava tudo.

São as imagens do único tiroteio registado por uma câmara de televisão entre as milícias indonésia e os militares da força internacional da Interfet que, nos finais de 1999, libertava Timor Leste da carnificina.

Numa crónica para a revista Visão a partir de Díli, a jornalista Jill Jolliffe escreveria que esse foi “o dia em que a SIC bateu a CNN”, a única televisão que nos acompanhava naquela saída com os militares à fronteia com Timor indonésio. Mas o título não fazia justiça.

Foi a astúcia de repórter de imagem e a serenidade debaixo de fogo que produziram as imagens que correram mundo e cravaram aquele momento na história. Foi o dia em que o Faria bateu a CNN.

Nesse Setembro/Outubro, éramos testemunhas e cronistas da história. Calhou-me o parceiro mais profissional e generoso.
E humano.

A humanidade do Faria foi maior do que nunca no dia em que acompanhámos Manuel Carrascalão na visita à campa do filho que tinha sido morto em casa pela fúria indonésia.

Antes, quis passar pela casa onde nunca mais voltara, esventrada pelo ataque. O Faria gravou as imagens que não precisaram de palavras. Lembro-me do barulho da fita a rodar na câmara e a cortar o silêncio.

O Faria a uma distância profissional mas respeitadora, a documentar o horror que o mundo precisava de ver, mas sem invadir este homem vergado à perda de um filho e de si próprio.

Já no cemitério, instantes depois dos joelhos deste pai tocaram a terra da campa do filho e dos olhos se desprenderem em lágrimas, pedi ao Faria para deixar de gravar, devia ser um momento íntimo.
– Já deixei há uns segundos!
– Já deixei há uns segundos!

O óculo da câmara não lhe cortou a sensibilidade, não o impediu de saber onde parar, talvez porque olhava frequentemente por fora do óculo, olhos nos olhos com a realidade, sem aquele filtro.

No dia em que subimos ao coração da montanha timorense para a reportagem do reencontro entre Xanana Gusmão e a guerrilha que liderara até ser preso, o Faria não se calou um segundo.

O caminho todo à conversa com o dono da carripana que aceitou levar-nos ao destino. Eu a planear reportagens mentalmente e ele lá à frente naquela música de palavras sorridentes.

O Faria conseguia falar com uma pedra, e que ela lhe respondesse, tal era a capacidade de conquistar os outros.
À chegada, percorremos o acampamento das Falintil em busca do comandante Falur, figura mítica da resistência timorense, o homem que liderava as operações.

O acampamento era um autêntico estaleiro. Dezenas de homens a preparar a festa para receber Xanana, a erguerem palhotas para receber os que haviam de vir de outras paragens porque depois da libertação a guerrilha estava a concentrar-se num único acampamento, mais perto de Díli.

A caminhada foi uma epopeia, o Faria parecia em casa. A cada meia dúzia de passos, estacava para mais um cigarro e mais uma conversa que fazia parar os trabalhos.

Chegámos, por fim.

O comandante Falur recebeu-nos e, percebendo que éramos da televisão, pediu um favor: se podíamos ver o que se passava com a velha e gigante antena parabólica instalada ali no meio do terreiro e que há meses deixara de receber o mundo.

Ora, isto era música para a veia generosa do Faria, já as mãos grandes a puxar do canivete que se multiplicava num nunca mais acabar de ferramentas. Inspeciona aqui, desaperta acolá, tira fio, mete fio, mas o prato de chapa e rede da largura de dois homens de braços abertos continuava sem sinal.

Continuou. Pôs-se a remendar uma parte da rede da antena como um pescador remenda as malhas da pesca. Já a acender o cigarro e depois de afastar a franja que cobria os olhos, sentenciou, no sorriso habitual:
– Pá, acho que está!

Mas não havia maneira de fazer a prova porque a televisão estava guardada e, por um razão que não recordo, não podia ser trazida naquele momento.
Em breve anoiteceu, o comandante Falur meteu-nos numa palhota onde esperava por nós um colchão feito de capas de espigas, nenúfares para dois corpos esgotados e habituados ao chão cru.

Fomos arrancados do sono pelo alarido que vinha do terreiro, uma mistura de vozes e gritos que o espanto, talvez o medo, não me permitiu logo decifrar.
– Vou ver, disse ele! E foi.

Mal inclinou a cabeça para fora da palhota, o sorriso quase instantâneo e um gesto com a mão para que me aproximasse.

Numa meia lua gigante, o acampamento em peso vibrava com o que se passava no centro do terreiro: uma caixa de luz trazia o mundo em português àquele lugar perdido nos confins do planeta e onde a liberdade acabara de chegar. Mas só naquele instante se fez plena.
– A antena funciona, Faria!

Fernando Faria 1972 – 2020”

“Diz-me que gravaste isto, ca…….”, gritei ainda a escorrer adrenalina.O Faria, com a calma que por vezes…

Posted by Bento Rodrigues on Saturday, November 21, 2020

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O subdiretor Pedro Cruz dedicou um emotivo texto a Fernando Faria.

“O Faria estava sempre a falar. Falava pausado, pensava sempre na palavra seguinte, mesmo que quando a fosse dizer não fizesse sentido nenhum. Mas, apesar de estar sempre a falar, o Faria nunca era aborrecido. Contava histórias, refletia sobre tudo, partilhava sentimentos e emoções, dava conselhos, estava atento. O Faria era um sedutor, um ‘charmeur’, sempre de olho brilhante, a compor permanentemente o cabelo que invariavelmente teimava em cair-lhe pela cara”, começou por escrever.

“Ele sabia disso e o gesto tornou-se marca. O Faria era um homem grande, e bom, e generoso, e amável. Um extraordinário companheiro de trabalho, um ser humano altruísta, uma alma cheia e um espírito de aventura, de conquista, sempre pronto para enfrentar o desconhecido e arriscar”, concluiu.

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