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A Entrevista – Quintino Aires

A Televisão
27 min leitura

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Presença assídua nos órgãos de comunicação social, Quintino Aires é, muito provavelmente, o psicólogo de quem mais se ouve falar em Portugal. Para além de exercer psicologia clínica, é professor universitário, lecionando Psicoterapia e Neuropsicologia. Já foi reconhecido internacionalmente com distinções como Copernicus Prize, em 2012, reconhecendo o trabalho que realizou no desenvolvimento da psicologia e em benefício do desenvolvimento da sociedade. Publicou vários livros, como A Hora do Sexo e O Amor É Uma Carta Fechada, também editado em Espanha. Aceitou o convite do A Televisão e vem comentar o preconceito e a maneira como a televisão influencia o desenvolvimento psicológico de todos nós.

Mais de cem mil pessoas quiseram entrar na Casa dos Segredos. O que é que leva uma pessoa a querer participar num reality show como este?

O desafio. Veja quando sai um concorrente o sofrimento que é… mesmo que estejam cheios de saudades das pessoas que têm cá fora, têm muita vontade de voltar para ali. Há uma série de emoções que as pessoas querem experimentar. Nós, humanos, animais, procuramos isso.

O número de inscritos ultrapassou as candidaturas das anteriores edições e também do acesso ao ensino superior em Portugal. Que leitura faz destes factos?

Uma leitura simples: A entrada no ensino superior é, não só mas essencialmente, para pessoas de 18 anos e o acesso à Casa dos Segredos é para uma banda etária muito maior, portanto é natural que os potenciais interessados em entrar na Casa dos Segredos sejam mais do que a amostra dos potenciais interessados em entrar no ensino superior. Não me incomoda absolutamente nada.

As pessoas devem ou não ser espectadoras da Casa dos Segredos? Porquê?

Na minha opinião, sim. Não é «devem», é conveniente que vejam. Ajuda-nos a expandir a consciência. Nós, humanos, não temos uma genética, um cérebro, que nos ajude a tomar consciência de nós próprios. Personalidade significa perceber-me a mim mesmo e diferenciar-me dos outros. Quando eu consigo fazer diferente de tudo aquilo que todo o meu bando faz, começo a construir personalidade. A nossa genética não nos permite fazer isso, então basicamente o que se faz há milhares de anos é nós comentarmo-nos uns aos outros, começarmos a olhar para os outros quase como um espelho de nós e vamos tornando, aos pouquinhos, consciência de nós próprios. O nosso cérebro transforma-se em termos anatómicos e fisiológicos para sermos capazes de termos consciência de nós próprios pelo termos olhado e comentado o comportamento daqueles que são semelhantes a nós. Há um ganho em termos de desenvolvimento da personalidade. Quando nós estamos a ler um livro, a olhar para um acidente que aconteceu, a comentar qualquer coisa com um familiar nosso ou com um vizinho, a ver uma telenovela… é isso que nós estamos a fazer e com uma força muito maior porque ali [Casa dos Segredos] não há um guião, está tudo a acontecer.

É muito comum ouvirmos comentários de pessoas que se dizem chocadas com o comportamento dos concorrentes. A sociedade, de uma forma geral, é assim tão diferente daquele grupo de pessoas?

Não, não é. É pior. A diferença que existe é para pior, porque mesmo que eles digam que se vão esquecendo das câmaras, não se esquecem completamente  e se se esquecessem, tinham a presença física de pessoas. Há muitas coisas que nós, humanos, só fazemos quando estamos sozinhos ou quando estamos só com uma pessoa e eles, ali, estão mais controlados e não fazem, portanto a sociedade faz coisas piores do que eles. Porque é que algumas pessoas dizem que se chocam? Porque, de facto, nós não temos formação em Ciências Humanas. Felizmente, sabemos muito de tecnologia, de informática, porque na escola aprendemos Português, Matemática, História, Geografia… mas não há um estudo do comportamento humano, da natureza humana desde pequeninos. Quando temos uma oportunidade de ver a natureza humana e não temos aquele refúgio como acontece numa novela «ah, isso é telenovela» e pela primeira vez começamos a tomar consciência de como é a natureza humana, ficamos muito surpreendidos e muito chocados.

Uma das atividades mais criticadas naquele programa é a prática do sexo. Essa não deve ser uma atividade a ser realizada num seio mais íntimo e privado?

O que é que seria privado? Por baixo do édredon?

5 A Entrevista - Quintino Aires

Não. Em casa, fora do programa.

Então, mas eu não vejo sexo sem ser debaixo do édredon… Eu estou na expectativa de ver, mas ainda não consegui, só no Big Brother 4 ou 5 do Brasil é que eu consegui ver na piscina. Aqui nunca vi. Vê-se?

Não.

Ah… bom.

Mas as pessoas criticam esses comportamentos [prática do sexo].

Mas não há lá prática do sexo que a gente veja.

Nós não vemos explicitamente, mas percebemos que existe.

Mas na casa ao lado também se sabe que existe. (risos)

Mas é uma situação diferente. Aqui vemos os movimentos, «as ondulações dos édredons», ouvimos alguns sons…

E na sua casa não houve os barulhos dos vizinhos no quarto ao lado? Faz parte da vida. As pessoas comem, as pessoas bebem… Estamos socialmente organizados dessa maneira e com muitas vantagens psicológicas. Por exemplo: comer em social, fazer sexo em privado. Mas eles retraem-se. Repare que eles não fazem sexo em cima das mesas, não fazem em cima da bancada da cozinha, têm sofás ótimos para fazer sexo e não os veem fazer sexo em cima dos sofás. Eles vão colocar-se debaixo do édredon, portanto têm a noção de privado e público. Eles não vão comer debaixo do édredon, eles comem em cima da mesa, para as pessoas perceberem o que eles estão a comer: público. Mas depois, no sexo eles tapam-se com o édredon. Nós vemos os movimentos, mas eles estão debaixo do édredon: privado.

Eu acho que as críticas das pessoas se devem ao facto de esse conceito de privacidade ser diferente daquele nós temos em nossa casa. As pessoas criticam muito. Porque será?

Diga-me lá: as pessoas vêem?

Explicitamente não.

Então… As pessoas sabem que os casais fazem sexo? Não vêem, mas sabem, portanto é uma crítica que não tem muito sentido. As pessoas não estão a analisar o objeto com cuidado.

«É um programa de televisão que deveria ser banido porque apela aos piores instintos de qualquer pessoa […] As pessoas são convidadas a mostrar o pior de si e esse é o objetivo daquele programa de televisão»; «É o momento mais baixo da televisão! Nunca vi um programa tão medíocre, tão sujo, tão baixo, tão miserável, tão deplorável! Isto é TV de sarjeta, de latrina, de esgoto!». Estas são palavras de Miguel Sousa Tavares e Eduardo Cintra Torres, respetivamente. Concorda com estas afirmações?

Seria necessário que Miguel Sousa Tavares lesse, por exemplo, Sophia de Mello Breyner [sua mãe] e aprendesse um bocadinho sobre a natureza humana.

Como é que se pode explicar que as pessoas tenham este tipo de pensamento em relação a um programa de televisão?

Quero não lhe responder. Quando acabarmos a entrevista eu respondo: o chamado off.

Nas redes sociais, é frequente encontrarmos comentários como este: «muitas das críticas que se tecem a este género televisivo são provenientes de pseudointelectuais, pessoas preconceituosas, pudicas, hipócritas, dissimuladas e com mentes fechadas, cujos seus horizontes são muito reduzidos.» Porque é que as pessoas têm tanta repulsa em admitir que são espectadoras do programa?

Porque são inseguras. Muita gente precisa absolutamente da validação dos outros sobre os seus comportamentos. Se eu não sou capaz ( e é isso que faz de mim seguro) de ter confiança e sustentar as minhas exposições (sustentar não é no sentido de argumentar, é de dizer «eu sou assim, ponto») isso caracteriza-me como inseguro. Se eu não sou capaz de aguentar a pressão, então eu não posso expressar uma opinião diferente daquela que eu acho que os outros todos vão reprovar, portanto tem de funcionar de acordo com a conformidade social e preciso disso para sobreviver, se não fico em pânico, fico aflito.

4 A Entrevista - Quintino Aires

Quer dizer que uma pessoa que assuma que vê este programa não está a agir em conformidade social?

Agora já sim, mas até há muito pouco tempo não, porque o socialmente correto era o «que horror, eu não vejo isso». Lembra-se de há pouco ter dito que tínhamos uma cultura sexual em que tudo se pode fazer, nada se pode dizer? Portanto eu posso ir espreitar a Casa dos Segredos e estar horas a ver o édredon a movimentar-se, não posso é dizer que vejo o que está ali. E como eu considero que o intelectual é aquele que sabe tocar as emoções e as transforma em razão, não é a razão por oposição às emoções,  então eu não posso deixar de concordar com o que aí está escrito dos pseudointelectuais aflitinhos, mas como diria o Papa «com toda a minha compaixão com esses sofredores».

As pessoas dizem que não vêem, mas o que é certo é que as audiências dizem o contrário, porque o programa bateu records sucessivos, nomeadamente na terceira edição em que houve domingos com mais de 2 milhões de espectadores em frente ao ecrã. Continua, portanto, a espreitar-se pelo buraco da fechadura?

Claro, o problema é se ficam zarolhos. (risos) É isso a que eu chamo a mediocridade portuguesa: espreitarmos pelo buraco da fechadura e não abrirmos a janela para ver o que se está a passar na rua.

A partir de que idade é que as pessoas devem assistir a estes programas?

Desde que se sentem. Eu acho que a partir dos seis meses já se sentam… Estou a brincar! Não há uma idade para se ver. Quanto mais cedo aprendermos sobre a natureza humana, melhores passos e de forma mais segura damos na vida. Aos três anos é suposto (se não for mais cedo) que comecemos a caminhar na vida, deixamos de estar na casa dos nossos pais e estamos no infantário, ou seja, começamos a socializar. Se vamos socializar, temos de conhecer a natureza humana, se não vamos iludir (e a consequência de iludir é desiludir a seguir) e vamos sofrer horrores com isso, fechamo-nos. Portanto, o mais tardar aos três anos pode falar-se sobre isso. «Ah, mas metade daquelas zangas não vão perceber»… com certeza que não! Mas só por estarmos lá a fazer teorias é que vamos entender. Na psicologia, desde 1978 que se fala numa coisa muito curiosa, muito interessante, que é a teoria da mente, segundo Premack, que é eu ser capaz de perceber que o que o outro está a pensar não é aquilo em que eu estou a pensar, o que um quer não é exatamente aquilo que o outro quer, o que um deseja não é exatamente aquilo que o outro deseja e ser capaz de me descentrar disso e depois começar a fazer hipóteses «o que será que o outro quer?» ou «o que será que o outro está a pensar?». Isto é fundamental para eu socializar e para me integrar na vida. Só consigo isso quando eu consigo olhar o mundo. Se eu estiver fechado, a não ver o mundo, não vou poder começar a construir a teoria da mente porque não há informação genética para a poder construir.

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O horário em que o programa é emitido é criticado por muitos, essencialmente o do Diário da Tarde, porque existem muitas crianças a ver televisão àquela hora. Como é que um pai explica a uma criança os momentos em que se ouvem os bips por cima dos palavrões?

Explica em português e é isso que faz dele um pai. Da mesma maneira como se explicam coisas piores como «o que é a pedofilia?». É isso que faz dele um pai. «Os meninos chatearam-se todos [na Casa dos Segredos]», mas então não se chatearam também ontem no infantário e teve que vir a educadora ralhar porque já estavam a puxar os cabelos uns aos outros? Não se passa ali nada, na Casa dos Segredos, que eles não conheçam.

Então porque é que existe uma classificação etária para a visualização daquele programa, a partir dos 12 anos com acompanhamento parental?

Porque fica bem. Assim não temos que aturar aquela categoria que há bocado estava a dizer aí [nr. Pseudointelectuais].

A abordagem de temas tabu/polémicos como a homossexualidade em novelas e nestes programas tem crescido exponencialmente nos últimos anos. De que forma é que essa abordagem é importante para a quebra de preconceitos?

É fundamental. Nós só conseguimos fazer um caminho se soubermos por onde é que vamos. Se eu estiver no meio de uma selva e quiser sair dali para sobreviver, mas nunca ninguém me explicou que devo seguir sempre a mesma direção, eu posso andar ali às voltas e morrer à fome. O mesmo acontece ali. Se eu não tiver espreitado a vida, eu não sei fazer a vida. Como é que eu sei que quando sinto excitação por um rapaz, aquilo é desejo se eu não tiver visto isso antes? Fico baralhado, fico angustiado, começo a lavar as mãos quinhentas vezes, começo a fazer medicação para controlar a minha ansiedade, se não tiver sorte sou internado numa estação psiquiátrica… assim já se perdeu uma vida. Eu questiono: porque é que na televisão temos tão poucas vezes referências à homossexualidade.

3 A Entrevista - Quintino Aires

De que maneira é que a televisão influencia o comportamento dos seus espectadores?

Tudo o que vemos pode influenciar-nos. Se você reparar, há quinze anos os  homens portugueses eram nojentos, cheiravam mal, não se lavavam, não se penteavam… eu não consigo perceber como é que as mulheres conseguiam deitar-se ao lado de um homem português, beijá-lo e lambê-lo. Com os futebolistas a arranjarem o cabelo e a serem mais vaidosos, os portugueses começaram a ficar mais bonitos e hoje as mulheres portuguesas são mais felizes e podem, mais tranquilamente, apaixonarem-se pelo homem. Da mesma maneira como acontece com os futebolistas, acontece com tudo o que se vê.

Na sua opinião, o que de melhor podemos retirar deste programas?

Podemos ver aquilo, pensar e ganhar mais força para não fazer igual. Eu, como português, sinto-me muito grato àquelas mulheres e homens que se disponibilizam a estar ali três meses (com intenções para eles, sei que não é uma intenção altruísta) mas eu também ganho. Quando eu olho os outros, eu reflito sobre mim.

Nós devemos ter uma capacidade filtrar o que é bom e absorver apenas isso?

Claro, e para aumentar essa capacidade, é importante conversarmos uns com os outros, por isso é que eu vou sempre insistindo: ver a Casa dos Segredos e conversar sobre o programa.

Se não comentarmos não é útil?

Também é possível escolher o que queremos e o que não queremos, mas é mais difícil termos força para dizer «isto eu não quero».

O Dr. Participaria num reality show?

(Pausa) Não, porque eu sou muito impulsivo. (risos) Hoje não podia porque as pessoas conhecem-me, têm uma ideia sobre mim e sobre as minhas impulsividades. Eu não tenho capacidade, e por isso os admiro a eles, para tirar três meses da minha vida e estar ali. Acho que não tenho a força que eles têm, e por isso não seria capaz. Se tivesse essa força, sim, claro, ia adorar e tal como os admiro a eles, ia admirar-me a mim.

Tira, daquele programa, ensinamentos para a sua vida?

Sim, muitos. A minha vida só faz sentido, se for para expandir a minha consciência cada dia, até ao último minuto. Eu estou a olhar aquilo… também posso olhar para a decoração, ver se as cores são bonitas (que por acaso não vejo muito) mas estou a aproveitar para ver o comportamento humano. Raramente consigo espreitar a emissão das sete horas… não consigo ver muito. Vejo, tudo somado, uma hora por dia. Aproveito ao máximo para ver a interação humana.

Como é que lida com as críticas que lhe fazem durante os seus comentários na rubrica Você vê… eu explico?

Cada vez melhor. O Manuel Luís Goucha tem-me ensinado muito. Sabe que em educação visual, no 7º ou 8º ano, a professora colocou uma cadeira em cima da mesa e pedia para cada um nós a desenharmos. Fizemos desenhos completamente diferentes uns dos outros… Eu acho que me vai acontecendo extamente a mesma coisa. Ao olhar para o meu comportamento ali e ler o que se escreve nas redes sociais, eu interpreto como a cadeira que está em cima da mesa e cada pessoa está a fazer o seu desenho do que ali vê. São as opiniões das pessoas. Mas depois há algumas opiniões que não dá mesmo para me irritar, porque percebo que nem sequer ouviram o que se estava ali a dizer.

Não o afeta?

Tenho pena que as pessoas não sejam mais conscientes de algumas coisas.

Eu lembro-me de ver novelas a partir dos cinco/seis anos e tenho memória de chorar baba e ranho a ver uma das primeiras a que assisti que contava uma história dramática de uma mãe que viu ser-lhe roubada a filha recém-nascida e que, anos mais tarde a reencontrava. Uma criança deve ser sujeita a uma realidade tão nua e tão crua como muitas vezes vemos nas novelas?

Vou-lhe responder a isso, gostei muito da pergunta, mas antes deixe-me só falar-lhe de uma coisa: Quando era miúdo, e depois quando comecei a trabalhar com crianças, não como psicólogo, ensinava uma coisa extraordinária que era: «atirei o pau ao gato, mas o gato não morreu. Dona Xica assustou-se, com o berro que o gato deu»; «o capuchinho foi levar o cesto à avó, veio o lobo, ele escapou-se do lobo e este engoliu a avó». Pronto, isto são histórias que só se ouvem a partir dos 20 anos de idade, não é? Todos ouvimos e ninguém ficou traumatizado por causa disso. Veja como as crianças riem a cantar o «atirei o pau ao gato» mas depois, se calhar, até têm um gato em casa e gostam muito dele, ficam muito aflitos se o gato está doente… não tem nada uma coisa a ver com a outra.

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Eu acho que nessas canções as crianças nem se apercebem da letra…

Pois não, e quando apanham alguma coisinha, aquilo traz-lhes emoções, que é o que a arte faz. Porque é que a arte é tão importante para nós? Porque a arte provoca-nos emoções e nós precisamos de experimentar emoções para crescermos. Se nós não as experimentarmos, não crescemos psicologicamente. Então porque é que as pessoas têm medo de tomar uma atitude? Olhe, por duas razões: primeiro porque as pessoas não sabem o que é uma criança…

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O que é uma criança?

Uma criança é um ser humano que está a construir-se, com um conjunto enorme de programas herdados de milhões de anos a vivermos na selva e que está a transformar-se no sentido de ir inibindo esses programas. Todos imaginam uma criança como um adulto que está ali a crescer, como uma árvore que cresce, portanto tem de se proteger, porque ela não precisa de experimentar nada, ela não experimenta nada, ao fim de uns anos já é grande, vai à vida dela e depois, quando essa criança tem 25-30 anos, vão a correr para os psicólogos, porque eles não conseguem arranjar emprego, não se integram no mercado de trabalho, não conseguem ser independentes e ainda dão tareia na mãe, porque a mãe, aos 30 anos, não lhes dá uma mesada para eles poderem sair à noite. Depois ficam muito surpreendidos: «o que é que foi que aconteceu?». Repare que nós vivemos numa sociedade em que por não se perceber o que é uma criança, que tem de experimentar coisas… há pais que levam os filhos à escola até aos 12 anos, às vezes até mais! Se não podem apanhar um autocarro ou andar 500 metros a pé, sozinhos na rua, como é que podem ver outras coisas menos perigosas como uma telenovela em que uma mãe perde uma filha e que a reencontra, uma discussão no Big Brother…? Há uma ideia completamente distorcida do que é um humano em construção, que se tenta meter numa redoma até ele ser grande, mais tarde retira-se e depois, claro que ele não é capaz de sair dela. Isto é um bocadinho semelhante àquilo que aconteceu em termos imunológicos e fisiológicos quando os europeus chegaram à América do Sul: os índios nunca tinham contactado com determinadas bactérias e bichos que nós levávamos nos nossos corpos, que a nós já não nos faziam impressão nenhuma porque já tínhamos defesas, mas como eles não as tinham, morreram. O mesmo acontece hoje quando uma criança não cria imunidades sociais e emocionais. Porque é que as pessoas acham que as crianças não podem ver? Eu acho patético que uma criança com menos de 12 anos não possa ver essas novelas sem ser acompanhado por um adulto. O que é que o adulto está ali a fazer? Se reparar, na maioria das vezes, não é por causa da agressão, porque se não também tínhamos isso no comércio dos videojogos, onde há coisas terríveis… há desenhos animados assustadores. Se as pessoas, de facto, fossem honestas, também aí diziam «não, não pode ver os desenhos animados». Então porque é que depois, nas novelas, não podem ver? Porque tem a sensualidade, o erotismo e por ter erotismo só podem ver ao pé de adultos. E eu pergunto: para quê? Se eles fizerem uma pergunta aos pais, eles vão ficar atrapalhados e não vão saber responder.

Leia, na próxima semana, a segunda parte desta entrevista.

marcio.ferreira@atelevisao.com

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