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Verde Rio

A Televisão
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– És mesmo o meu orgulho, querida. Sempre disse que ias herdar o dom do teu avô e não me enganei – disse, feliz, Filomena à filha, Ângela, depois de mais uma exposição de sucesso.

Com apenas 18 anos, Ângela era uma pintora bem conhecida na sua cidade, Beja. Todos admiravam a sua exímia capacidade de transpor nas telas o que lhe ia na alma. Não o fazia para os outros verem, mas as exigências da mãe e o orgulho que via no seu rosto em cada exposição ajudavam-na a ultrapassar toda a vergonha e os traumas do passado. Sentia-se culpada pela morte do irmão e esta era uma forma de compensar a progenitora por tudo o que acontecera.

Duarte falecera repentinamente, mesmo ao lado de Ângela, durante uma viagem de autocarro para a escola. Pensara que o irmão tinha adormecido e não o acordara. Mas estava enganada. Com apenas 12 anos, o rapaz sofrera um ataque cardíaco. Na época, a situação chocou grande parte da população. Atualmente, era assunto tabu e pouco ou nada falado. Filomena tentara assassinar a própria filha, mas depois de perceber o dom desta acabou por mudar completamente a sua atitude. Inocente, Ângela nunca imaginara quais os verdadeiros intentos da progenitora, que idolatrava desde os tempos de criança.

Para além de uma excelente pintora, a jovem era também uma ótima aluna. Gostava de ser arquitecta, mas a mãe queria que investisse a sério no seu talento para a pintura. E foi isso que fez.

Uma oportunidade única acabara de surgir e, a pedido de Filomena, Ângela acedera. Teria que ir um mês para Lisboa, mas a mãe queria acompanhá-la. E assim o fez.

Enquanto ia para as aulas, a mãe ficava em casa. A bolsa incluía um subsídio para um acompanhante e as ajudas que recebiam do estado depois da morte do pai ajudavam a cobrir as despesas. Todos os dias tinha à sua espera um delicioso jantar confecionado especialmente para si. Tudo correu aparentemente bem durante a primeira semana. Até que, na segunda semana do curso, Ângela pediu à mãe para regressarem ao Alentejo. Não se identificava com os colegas. Sentia-se num mundo totalmente diferente daquele que conhecia como seu. Tinha saudades do silêncio da sua terra. Da alegria de pintar a ouvir o relaxante som da natureza. De poder conversar com o irmão bem perto dos seus restos mortais.

– Só podes estar maluca, Ângela! Estou aqui a fazer um esforço por ti. Não sabes o que aconteceu com o teu irmão? És a minha única filha, agora. Quero que sejas alguém na vida. Beja não é suficiente para o teu talento. Aqui é que tens que estar. Não vou aceitar que voltes para o Alentejo. Temos que ficar aqui. – disse Filomena, visivelmente incomodada e preocupada com a ideia da filha.

Triste e sem saber o que dizer, a rapariga voltou para o seu quarto. Numa folha de papel pintou o que lhe ia na alma. Ao pegar no pincel, lembrou-se de Duarte e da forma como o seu sorriso malandro contrastava com os seus olhos brilhantes. Uma lágrima caiu-lhe pelo rosto. “Tenho saudades tuas, mano. Se aqui estivesses era tudo muito mais fácil”, pensou. Continuou a pintar, mas manteve o pensamento em Duarte. Precisava de ouvir a sua voz. Precisava de estar com ele. De que ele a defendesse perante a mãe. Mas isso não era possível. Terminou a sua obra e guardou-a. “Vou colocá-la no cemitério quando regressar a Beja”, prometeu a si própria.

Aguentou mais uma semana, mas cada vez mais tinha vontade de desaparecer. Contudo, não podia desapontar a mãe.

– Lembra-te de que és a minha única filha, Ângela. Só quero o teu melhor. – dizia-lhe Filomena todos os dias, quando saía para as aulas.

No curso que frequentava, a jovem aprendera novas técnicas de pintura e sentia-se cada vez mais profissional. Contudo, apesar de isso a realizar, não o fazia completamente. Faltava-lhe algo, que nem ela sabia. O cheiro da natureza? As palavras do irmão? Talvez um pouco de motivação extra.

– Parabéns, filha. Estou tão contente por mais este passo. – disse Filomena, quando soube da notícia de que a filha fora convidada para fazer uma exposição numa das mais conhecidas galerias de Lisboa, prémio por ter sido uma das três melhores do curso.

– Obrigada, mãe. Mas agora temos que ir para o Alentejo. Preciso de ir para lá. É lá que quero preparar a exposição. E não me digas que não, porque, desta vez, eu vou mesmo.

– Está bem, filha. Não vou voltar a insistir. Partimos amanhã?

Chegadas a Beja, Ângela tratou de cumprir o seu desejo antigo e foi até ao cemitério colocar a obra que fizera em Lisboa na campa do irmão.

– Estás aí, mano? Falei contigo no outro dia. Trago-te o que te prometi. Gostas? Vou fazer a minha primeira exposição em Lisboa! Estou contente! Sei que também estarias! A mãe anda doida. Parece que é ela que vai ter o trabalho todo. Vais aparecer por lá?

Olhou para o céu e, em plena luz do dia, viu uma estrela brilhar como se fosse de noite.

– Eu sei que és tu, maninho. Obrigada por me ajudares mesmo estando tão longe!

E uma lágrima caiu-lhe pelo rosto. Uma única lágrima mas que carregava a dor da perda de um ente querido, mas não um ente qualquer. Apenas e só o seu irmão gémeo. Aquele que sabia tudo da sua vida. Que sentia só como ela sentia. Que a entendia, que a compreendia. O seu verdadeiro amor.

Depois da tarde passada no cemitério a recordar os momentos que passara ao lado do seu irmão gémeo, Ângela regressou a casa. Decidiu pôr mãos à obra e escolheu para tema da sua exposição o irmão. Iria retratar tudo aquilo que era, afinal, o seu querido Duarte.

O primeiro passo foi pedir à mãe que a deixasse entrar no quarto que há anos estava fechado. Inicialmente, Filomena recusou. E fez muita força para que a filha desistisse da ideia. Contudo, depois de perceber que podia deitar tudo a perder, acedeu. “Mas tem cuidado com o que fazes”, adverteu.

Ângela decidiu instalar o seu pequeno atelier no quarto que anteriormente pertencera a Duarte. Tentou não mexer muito na decoração para não causar mal-estar na mãe. Durante uma semana e meia dedicou-se única e exclusivamente a esta tarefa. Fez doze quadros de diferentes dimensões e ainda cinco esculturas para abrilhantar a galeria. Faltava apenas o quadro onde estaria um retrato de Duarte.

Durante todos aqueles dias, Filomena fez questão de não entrar no quarto do filho. Tinha medo de que os dramas do passado a voltassem a atormentar. Não queria ver o que a filha já tinha feito. Queria ser surpreendida. Tinha receio da sua reação ao ver todo aquele trabalho. Contudo, e num ato de ansiedade, decidiu entrar.

Ao abrir a porta, o seu mundo parou. Olhou em volta e viu cada momento da vida do filho transferida para aquelas obras. Sentiu dor. Queria elogiar a filha. Fizera um trabalho exemplar. Mas os fantasmas do passado não deram tréguas e lembrou-se do dia em que soube da morte do filho. Para ela, Ângela era a causa de tudo isso. Não entendia como um menino de doze anos, saudável como Duarte poderia ter tido um ataque cardíaco. Achava que tinha sido a filha a provocar a morte do irmão. Por momentos esqueceu tudo aquilo que a filha fizera ao longo dos últimos tempos. Não pensou no dinheiro que iria receber furto da exposição em Lisboa. Pegou em cada uma das obras e trouxe-as para o quintal. Com os olhos a jorrarem ódio, queimou, sem dó nem piedade, tudo aquilo que a filha fizera. Não pensou no trabalho e dedicação depositados. Só no ódio que sentia por Ângela. Gritou. Chorou e as cinzas de tudo aquilo colocou numa pequena caixa de plástico, que posteriormente deixou no quarto da filha com uma carta em que a expulsava de casa e da sua vida.

Ao chegar a casa, Ângela nem queria acreditar no cenário que a esperava. Estava arrasada. Não sabia o que fazer. O papel escrito pela mãe era bem explícito. Teria que sair de casa. E assim fez. Pegou no cavalete, na caixa com as cinzas da sua obra e numa mala onde colocou algumas roupas e objetos indispensáveis e saiu de casa. Partiu rumo ao rio onde costumava brincar com Duarte. Ainda lá estavam os destroços do barco onde o pai de ambos pescava antes de falecer. Olhou ao seu redor e sentiu a presença do irmão. Espalhou as cinzas das obras que pintara pelo rio.

Pegou numa tela, colocou-a no cavalete, pegou nas tintas e fechou os olhos. Visualizou o seu amado irmão e o seu exótico cheiro. Sorriu ao ver a imagem na sua mente, e desejou que ela nunca mais saísse da sua cabeça. Há muito que já não conseguia visualizar, na perfeição, todos os detalhes do rosto de Duarte. Decidiu transpor para a tela o que lhe ia na alma. Com o resto da tinta que lhe sobrava pintou o que a sua mente pedia. Queria voltar para junto do irmão. Precisava de ouvir a sua voz. Quando lhe faltou a tinta, usou as lágrimas que lhe escorriam pela face. Cada uma delas gritava dor e quebrava o silêncio juntamente com os gemidos da sua voz rouca. A dor era tanta, que sentia o seu coração na garganta, a explodir como dezenas de bombas atómicas, a correr como um cavalo de corrida, a rugir como um leão enfurecido. Até que deixou de o sentir. E partiu feliz para junto do seu verdadeiro amor.

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