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A Entrevista – Tozé Martinho

A Televisão
24 min leitura

A Entrevista - Tozé Martinho

Tozé Martinho tem 66 anos, é actor e o mais experiente argumentista da nossa televisão. Chegou a este meio como ator, em Vila Faia, mas rapidamente passou à escrita. Colaborou com a TVI e a Plural durante 13 anos consecutivos, onde assinou vários sucessos como A Outra e Olhos de Água. A novela portuguesa mais vista, Dei-te Quase Tudo, também é da sua autoria.

O Tozé chegou à TV através da representação. Como é que passou ao guionismo?

Estávamos na telenovela Origens e eu comecei a trabalhar na sequência dos textos que iam chegando, dando algumas sugestões ao autor, que era nosso amigo… algumas foram bem acolhidas e eu comecei a trabalhar nesse sentido. Logo de seguida comecei a fazer projetos, propus à RTP começar a desenvolvê-los e eles acolheram isso pela positiva.

Qual era o ambiente que se vivia nos bastidores naquela altura?

Era um espírito vantajosamente primário, que não tinha aspetos malignos. De facto, o espírito era de entusiasmo, que foi muito vantajoso para o projeto. Logo que o mesmo começou a ter aspetos menos bons, deteriorou-se a ambiência que se vive neste modelo, e penosamente. As coisas começaram a correr muito pior.

O que é que acha que pode ter corrido da pior maneira?

Vários apetos… Penso que um dos mais graves foi a inveja, que em determinada altura começou a proliferar e a contribuir para a «má língua» e deu cabo de aspetos que eram muito positivos. Tinham-se granjeado grandes amizades, ainda hoje tenho amizades desse tempo, e começou a haver uma amizade subordinada a outros interesses, o que foi muito mau.

Naquela altura não sabíamos nada, estávamos a começar tudo. Como é que se passou logo à criação de histórias originais?

Inicialmente, a novela era portuguesa, e logo que apareceram os canais privados, apareceram as novelas brasileiras, que suplantaram, logicamente, porque eles estavam muito à nossa frente, as portuguesas. Aí eu comecei a pensar como é que ia combater isso. Fiz os meus projetos e, pela primeira vez, quando disse isso ao diretor de programas da RTP, ele duvidou do que eu estava a dizer mas, de alguma maneira, fez a aposta e eu ganhei-a. Logo na primeira novela tivemos imediatamente uma audiência fantástica.

Portanto, o seu objetivo foi criar uma correspondente do lado de cá para tentar travar a invasão da novela brasileira?

Exatamente. Simplesmente, isso ao longo do tempo foi-se deteriorando, porque as estações começaram a sentir que podiam mexer no texto, convidar atores arbitrariamente e dispor a novela a seu belo prazer… isso não pode ser feito assim. A novela é criação do seu autor e não se pode mexer, podem fazer-se sugestões, que eu aceito que se faça.

Porque é que acha que depois de a RTP ter tido sucesso com a novela portuguesa parou essa produção e voltou a importar as brasileiras?

Vocês imaginam que interesses é que estão por detrás disto?! Os portugueses têm que se começar a situar de que quando se mexe no Himalaia, não se tem pela frente um morro que se empurra com o pé… De facto, era um Himalaia brasileiro que tem uma influência muito grande em todo o processo e movimenta muito dinheiro.

1 A Entrevista - Tozé Martinho

Não acha que deveria ser a RTP, enquanto estação pública, a apostar mais naquilo que é português?

Não necessariamente. Aquilo que eu acho é que as estações deveriam apostar na qualidade, que é algo que a RTP, a TVI e a SIC não estão a fazer.

Quais são as diferenças entre escrever uma novela há trinta anos atrás e hoje? O que é que evoluiu?

Tudo. É a captação, a sensibilidade do público. Mudou o próprio público. As novelas, tal como as conhecemos, ganharam o seu público-alvo, que já não é a juventude, são os mais velhos. O público mais central é dos quarenta, quarenta e tal anos, que gosta de ficar em casa a ver a novela, portanto é preciso que os autores se apercebam que a configuração e a captação do interesse da juventude se fará de determinada maneira, simplesmente não é da maneira que eles imaginam que é, porque a sensibilidade da juventude tem uma determinada via e essa via tem que ser explorada, não pode ser ignorada. Isso é fundamental.

Pensou em seguir esta carreira desde cedo?

Eu tenho uma série de autores na minha família: a minha tia é a Isabel da Nóbrega, a minha irmã é a Ana Maria Magalhães, a minha mãe é a Ângela Sarmento… são três escritoras. Sempre estive submetido a testes desta natureza, porque lia com frequência. Escrevi dois livros de contos, mas nunca me dediquei com grande força a isso, foi depois nas novelas que me dediquei e que me comecei a aperceber que tocar na sensibilidade das pessoas não é fácil, é muito exigente.

3 A Entrevista - Tozé Martinho

Atualmente, as nossas novelas já não conquistam uma faixa tão alargada de público como conquistavam há uns anos atrás. Acha que o público perdeu o interesse pela novela?

Acho que as novelas deixaram de ter essa sensibilidade, de que lhe estou a falar, porque as pessoas escreveram novelas como se estivessem a escrever um romance policial e a novela, no fundo, retrata a nossa vida, e isso tem de ser tocado. A reação de uma mãe que está a ver um filho bebé não pode ser um simples sorriso, há tudo o que está por detrás disso, que ela tem que saber representar. Caso retrate isso, vai captar a atenção do público de uma maneira indiscutível.

2 A Entrevista - Tozé Martinho

Na sua opinião, o que é que um autor deve fazer para conseguir voltar a captar a atenção do público?

O autor tem de saber escrever aquilo que lhe vai na alma, não pode passar ao lado disso. Isso é válido com esta atitude da mãe com a criança, é válido de uma neta com a avó, em que há uma troca de olhares, uma frase mais tocante… Uma novela retrata, no fundo, a sociedade, não pode só mostrar imagens.

4 A Entrevista - Tozé Martinho

No Brasil, por exemplo, criam-se novelas para determinado tipo de horários e mantêm-se sempre na mesma faixa, coisa que em Portugal não acontece. Acha que isso é responsável pela perda de audiência das novelas?

Naturalmente. Os brasileiros, que estão à nossa frente há uma data de anos, já perceberam que isso é fundamental. Eles fizeram há pouco tempo uma novela, Avenida Brasil, que teve cenas absolutamente notáveis.

Em Portugal ainda é muito pouco comum apostar-se em ficção de época. Porque é que se aposta tão pouco em novelas de época?

A novela mais famosa de época que houve foi Ricardina e Marta.

Mas já não se fazem novelas de época em Portugal há alguns anos…

É muito mais caro, e eu considero que merecia a pena fazer, mas enfim…

Ultimamente temos assistido a uma onda de remakes. O Tozé gostava de dar continuidade a alguma das suas histórias?

Pensou-se em fazer a sequência, por sugestão da Sofia Alves, de Olhos de Água e de outra novela, mas acabou por não ser feito.

Gostava?

Gostava, é um desafio.

5 A Entrevista - Tozé Martinho

Acha que a febre dos Emmy têm levado as estações a apostarem de uma forma excessiva e continuada nos mesmo autores?

Das cinco novelas mais vistas, eu tenho três, o Manuel Arouca tem uma e o Rui Vilhena tem outra. Não está lá nenhum desses (dos que ganharam os Emmy). Isso comporta defeitos, às vezes graves… Eles vão ter que acabar por reciclar ideias nesse aspeto, se não, é penoso para eles. Têm que repensar tudo isto.

Depois de termos feito um percurso tão bem sucedido com originais, acha que faz sentido voltarmos a importar guiões?

Não cabe na cabeça de ninguém! Como é que é possível?! Só me pergunto isto…

Porque é que acha que voltou a acontecer?

Eu não quero estar a entrar por aí, se não, começo a dizer mal das coisas.

Não acha que a realidade portuguesa está bem tratada?

Está muito mal tratada. A história dos portugueses está muito mal retratada.

A TVI está a reconquistar audiências à conta dessas adaptações… Não acha que isso é uma alternativa à falta de criatividade?

Eu não quero estar a acusar os meus colegas de falta de criatividade, mas de facto, tenho visto coisas de pôr as mãos na cabeça.

6 A Entrevista - Tozé Martinho

Acha que o regresso de José Eduardo Moniz à TVI é uma mais valia?

(Pausa) Sim, porque eu acho que o José Eduardo Moniz é das poucas pessoas que sabe mesmo disto. Talvez ele não acerte aqui e ali…

Quando o Tozé cria uma novela, gosta de sugerir atores?

Os fundamentais, aqueles que fazem a história. Isso é muito importante. Se não fazem a história, se participam só, é indiferente, mas aqueles que contam as histórias, sim.

Quando cria um personagem pensa num determinado ator ou cria de uma forma abstrata e considera que o ator é que tem de se adaptar à personagem?

Muitas vezes nós sabemos que determinado ator seria ótimo, mas não pode porque está noutra novela ou noutro projeto. A escolha terá que ser sempre sujeita a uma análise certa da pessoa. Isso é fundamental.

É uma preocupação sua dar a conhecer Portugal aos portugueses?

Levemente, mas sim. Eu acho que nós temos a obrigação de contar às pessoas as coisas, mas relacionando-as com a imagem do país. Acho importante.

Em Louco Amor tínhamos um elenco de luxo e um autor consagrado. Começou por vencer e depois passou a vencida. O que é que correu mal?

Aconteceu porque eu fiz os primeiros 50 episódios sem interferências e ao fim desses episódios, apresentaram-me pessoas, que a TVI tinha escolhido, para reverem textos meus… passaram a mexer no texto.

11 A Entrevista - Tozé Martinho

Não acha que, como autor, deveria ter «pulso firme» nessas situações?

É muito difícil. Quando uma novela está à frente, a TVI não pode tolerar que venha uma pessoa sem experiência nenhuma, mexer no texto. Não pode tolerar! É impensável! Atenção, eu não estou a dizer que não haja a hipótese de sugestões ou conselhos, eu tenho de ter essa faculdade.

Sente que Louco Amor foi um projeto seu?

Claro que foi um projeto meu, todo meu. Eu tenho o início da novela todo escrito. Até ao episódio 50/60 fui eu e os meus colaboradores que escrevemos.

Mas o rumo da história mudou…

Pois, o rumo da história mudou e a novela começou a descer.

Então o rumo que o Tozé queria dar à história acabou por não ser aquele?

Acabou por não ser, sim.

7 A Entrevista - Tozé Martinho

Durante muito tempo a nossa ficção esteve claramente atrás da brasileira. Acha que atualmente os nossos atores, equipa técnica e autores estão ao nível da produção internacional?

As novelas brasileiras baixaram muito de qualidade. Isso é uma evidência tão grande que mesmo aquelas que eles fazem de uma maneira que a gente gosta de ver… não têm nada a ver com a tal Gabriela, de que você estava a falar.

Houve um remake, muito recente, de Gabriela. O que achou?

Não teve nada a ver com o original. (qualidade)

É gratificante perceber que o público gosta de acompanhar as nossas histórias?

Essa paixão sente-se. Há um brilho no olhar quando as pessoas falam connosco e eu pergunto «então, tem visto a novela?» e a pessoa me responde «não perco um episódio».

A escrita é, para si, uma paixão?

É, quando escrita com estas prerrogativas. É uma paixão quando é escrita como deve ser, não pode ser assim: escrevo isto, agora vai para o estúdio e há outro gajo que escreve por cima, há outra que escreve mais não sei o quê…

8 A Entrevista - Tozé Martinho

Mantém-se fiel ao seu registo ou sente necessidade de alterar porque o público está cada vez mais exigente?

Eu acho que o público é, cada vez, menos exigente.

Mas as generalistas estão a perder audiência para o cabo…

É uma forma triste de fugir… É uma forma de fugir sem pedir responsabilidades a quem manda. O que a pessoa tem de fazer é dizer que isto é uma porcaria, ligar para a estação e manifestar, fazer um artigo a dizer que não há direito… Isso é que é um público participante.

Mas voltando ao seu registo, mantém-se fiel?

Eu tenho uma fórmula de escrita… acho que sou fiel e acho que deve ser assim. Não quer dizer que eu não seja sensível a determinadas alterações, mas sim. Eu acho que há uma maneira de escrever e que essa maneira tem que prosseguir… é um trabalho muito difícil mas tem que ser assim. Não se pode brincar com um trajeto.

Porque é que acha que Sentimentos também não foi tão bem recebida pelo público?

Pela mesma razão. Foi aí que tudo começou. Começaram a mudar coisas, a dar ideias e tal… foi nessa novela que tudo começou. Sobretudo, quem se prejudicou foram eles.

Mas voltando à questão da exigência do público. Não acha que esse abandono das generalistas e procura da TV por subscrição reflete o aumento da exigência? O público hoje não assiste a uma novela só por assistir, tem que haver algo que capte a atenção…

Assiste, assiste. A pessoa está a ver a novela e a ler o jornal. Não há é o rigor que havia antigamente, em que quando passava uma novela, a pessoa discutia a novela de uma forma exigente. Agora, a pessoa diz «vi um bocadinho e depois passei para outro canal, depois voltei à novela»…

Acha que esse zapping não tem que ver com a exigência do público, mas sim com a perda de qualidade das produções?

Claro. Acho que diminuiu…

Mas não era suposto aumentar, uma vez que adquirimos mais experiência?

Mas eles não optaram por aí, eles não se tornaram exigentes. Isto tudo foi um bocado utópico, como se processou.

Com o que aconteceu às suas duas últimas novelas, sentiu-se desvalorizado como autor?

Não, não me sinto desvalorizado. Acho que quem ficou prejudicado foram eles.

Mas foi o seu nome que esteve em causa…

Antigamente, uma novela para ter uma grande audiência, tinha 23, 24, 25, 26, 27 % de audiência. Agora, tem 12% e dizem que é uma grande audiência… Com 12 %, naquela altura, chamavam-me lá e diziam-me «ó Tozé, o que é isto?». Não se tolerava isso de maneira nenhuma.

9 A Entrevista - Tozé Martinho

Acha que o facto de as suas últimas duas novelas terem tido pouca audiência ditou o fim do seu contrato de exclusividade e agora esta paragem?

Foi, acho que foi. Simplesmente eu acho que isso tudo foi construído.

Como assim?

«Ah, agora vamos mudar os textos dele»… Foi intencional.

Saiu da TVI com alguma mágoa?

Sem mágoa nenhuma, porque eu estou absolutamente convicto de que o mal foi deles. Tive oportunidade de parar a minha vida para a viver desta fórmula… não estou propriamente à fome.

Não acha que quando um autor faz uma novela deveria impor algumas exigências ao canal?

Não é possível, porque quando começamos a escrever, assinamos um contrato que lhes permite fazerem alterações ao projeto. Não deveria ser assim, mas já é desde o princípio. Eles, legalmente, podem-no fazer, mas é altamente penoso. Penso que eles vão abrir os olhos, mais tarde ou mais cedo. Vamos ver é se ainda vão a tempo.

Acha que por se prolongarem muito as novelas, a criatividade do autor e o ritmo da mesma são prejudicados?

Eu não estou muito de acordo que se estique uma novela para 370, 380, 400 episódios. Acho que as novelas têm a sua duração. Quando chegam ao fim, deveriam terminar, portanto deveria ficar-se com essa ideia na cabeça, até porque depois as alterações fazem com que as pessoas já não saibam se aquele gajo é bom ou mau… Às tantas não se percebe a novela.

O Tozé tem estado dedicado ao teatro, durante esta pausa na TV. Tem tido uma boa receção por parte do público?

Muito boa. As pessoas falam comigo «ó Tozé Martinho, você nunca mais apareceu, nós precisamos de si nas novelas» e eu valorizo muito isso. Sinto que parte dos aplausos são também para aí, e eu acho isso simpático por parte das pessoas. Tenho tido, com o público, uma relação de grande paridade.

Já sente saudades de escrever novelas?

Tenho saudades de escrever novelas e tenho tido ideias, que estão guardadas no meu computador, e algumas são de grande audiência.

Sabendo que os canais podem alterar o rumo das novelas, continua a ser entusiasmante escrevê-las?

É, é entusiasmante.

Nós já fazemos novelas há mais de 30 anos. Acha que ainda há histórias para contar?

Há, claro que há.

10 A Entrevista - Tozé Martinho

Não acha que as novelas estão a apostar muito no mesmo clichet?

Repetem os clichets… Há um rapaz que se apaixona por uma rapariga e depois, seja em que novela for, vivem sempre o romance da mesma maneira, e isso não faz sentido.

A  novela tem, na sua base, este género de conflitos e não pode viver sem eles…

Claro, têm é de ser vividos de uma forma diferente. Isso pode contar-se, não de mil, mas de duzentos milhões de maneiras. A diferença da novela está no autor que a escreveu.

Mas não acha que o género da novela e as caraterísticas do folhetim, que tem na base, não permitem ao autor descolar-se muito daquele registo? Por onde é que passa a inovação?

A inovação é sentida pelo autor e vivida pelo ator, mas essa inovação já existe ou não. Se não existe, as coisas passam-se da mesma maneira, quando existe essa inovação, isso modifica todo o romance. As pessoas vão ver porque querem saber qual é a continuação.

Mas torna-se complicado evoluir na criação de novos enredos em novela…

Claro, claro que se torna. Mas também nunca se disse que escrever era simples.

Acha que José Eduardo Moniz vai conseguir voltar a colocar as novelas portuguesas na preferência dos portugueses?

Vai. Vai, de certeza. Ele tem essa habilidade. Eu tenho, pelo José Eduardo Moniz, uma grande paridade. Ele foi um bocado apanhado de repente e não sei se estaria muito preparado para isso, mas acho que sim.

Agora, com ele na TVI, tem esperança de voltar à escrita de novelas?

Ele tem esse interesse, ele sabe que a primeira novela que eu escolher… sabe o que vai resultar dali.

Há uns anos, esteve prestes a assinar contrato com a SIC. Acabou por assinar com a TVI. Arrepende-se de o ter feito, vendo este desfecho?

Não, não arrependo. A vida é mesmo assim, às vezes está em baixo, às vezes está em cima e a pessoa tem que se habituar a isso. Mas ponho muitas questões do género «se eu tivesse aceitado, o que teria acontecido?»… às vezes penso nisso.

Uma entrevista de Márcio Ferreira, com colaboração de David Soldado.

marcio.ferreira@atelevisao.com

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