Nem todo o fado é triste, tal como nem todas as fadistas cresceram em bairros tÃpicos lisboetas. Descomplexada e alegre, Cuca Roseta interpreta com alma os fados quase todos escritos por si. «Raiz», o segundo álbum, é fruto do seu crescimento, como fadista e autora. Esta é uma entrevista em que Cuca Roseta nos fala um pouco sobre a sua paixão pela música, as suas influências e os seus projetos.
De repente, a Cuca Roseta do pop e do rock aventura-se nos meandros do fado. Como se deu essa transição?
A transição deu-se devido a uma paixão, uma surpresa que tive quando entendi e ouvi atentamente este género musical tão intenso. Seria o único género musical pelo qual dedicaria a vida, muito mais que uma música, muito mais do que uma performance para mostrar a voz; um encontro profundo com o ser e a espiritualidade, com a dicção e a alma, a poesia e a declamação de poesia através da música, da nostalgia e das sensações. Um género musical que é um verdadeiro desafio e que acompanha lado a lado a experiência de vida.
O que é que te distingue dos outros artistas?
Costumam dizer que o meu fado é mais leve e fresco. Eu acho que para se ser único só é preciso sermos nós próprios, sem medo de seguir o nosso instinto. Eu sou uma romântica que gosta de pensar sobre a vida, o amor e o comportamento humano. O sofrimento faz parte integrante da vida, é uma experiência que inclusive considero imprescindÃvel para o crescimento interior. É fácil falar sobre a dor quando já não dói, mas eu sou uma mulher positiva, que vê o lado bom da vida (e talvez seja por isso que o meu fado seja mais leve). Ele não se queixa, ele assume a dor como parte da vida e levanta-se sempre de cabeça erguida depois da queda.
Tens cantado além-fronteiras. É possÃvel entender o fado sem perceber a sua letra?
O fado é world music, é uma música sem fronteira ou lÃnguas porque toca realmente muitos estrangeiros, e até mais estrangeiros que portugueses. Quem o canta deve dar primazia ao poema, e canta-lo como sendo a sua experiência de vida para lhe dar essa verdade obrigatória a este género. Mas a verdade é que o que chega não é a história, mas o respeito e a intenção que se coloca nas palavras e na história. O fado é muito mais que palavras, muito mais que mostrar a técnica vocal. O fado vem de dentro, escava no fundo de nós mesmos e vai buscar a verdade mais bela, o mistério mais Ãntimo… É, sem dúvida, único.
Isso de o fado ser «música de velhinhas» já faz, portanto, parte do passado.
O fado, por muito tempo, foi considerado a música dos mais experientes e entendidos. Mas o fado é para todas as idades e a prova disso é a imersão desta nova geração de fadistas – com novos fadistas a contar e a cantar as suas experiências de vida, ainda por cima fadistas tão diferentes. Surgem muitos jovens a identificarem-se com estas novas letras, que naturalmente os desperta mais para este género musical tão forte e especial. Alguns fados chegam até às crianças, que, por crescerem a ouvi-lo, mais tarde o entendem e apreciam melhor.
Não só do fado vive Cuca Roseta, suponho. Que outras sonoridades aprecias?
Muitas. Gosto muito de piano, aliás, também toco, mas o que mais gosto de ouvir, no geral, é música clássica. Gosto muito de jazz, blues, música brasileira, espanhola, francesa, italiana. Ah, e os clássicos da pop: Michael Jackson, Queen, Beatles, Abba. Mas o preferido de todos e de sempre é Nat King Cole.
«Raiz», o teu segundo álbum, é considerado por muitos um dos melhores projetos nacionais de 2013 até ao momento. Como descreves esta tua obra de arte?
Antes de mais, agradeço a forma como a pergunta foi feita. É um disco muito Ãntimo, muito meu, onde pus toda a minha vida e o meu coração. Aà sim, está toda a minha verdade. Não há maior alegria do que sentir que a minha entrega chegou de alguma forma a alguém, quanto mais a tantas pessoas. Soube hoje [25 de agosto] que «Raiz» atingiu o galardão de ouro e confesso que a alegria que me deu por dentro foi bem mais especial do que saber que o «Cuca Roseta», meu primeiro disco produzido por Gustavo Santaolalla, foi ouro. «Raiz» foi um encontro comigo própria, com o meu fado.
Em 2013 fizeste a primeira parte do concerto de Julio Iglesias no MEO Arena. Foi uma experiência única…
Uma experiência única, onde aprendi muito com alguém que passou uma vida inteira a cantar e que com muito carinho tem muito para ensinar. Um momento emocionante em palco.
Foste também uma das convidadas de David Bisbal, um fenómeno de vendas em Espanha e na América Latina.
Fiquei muito lisonjeada de poder gravar com David Bisbal. Admiro-o muito como pessoa e como artista. Tem realmente uma voz, uma dicção, um sentimento e um profissionalismo de louvar. É realmente um grande artista, e vê-lo trabalhar e poder trabalhar com ele, ainda por cima numa mescla de duas culturas com tanta força e personalidade marcante e distinta… Bem, é uma explosão poder unir Espanha e Portugal através da música, e a convite de um dos maiores artistas do momento! «Si Aún Te Quieres Quedar» é um tema lindÃssimo, que me dá um imenso prazer cantar.
O Rising Star foi apresentado como «o programa do ano», mas não causou muito impacto. Qual a sensação de estar num projeto que não tem a visibilidade pretendida?
Não tive muita noção dessa falta de visibilidade ou falta de impacto. Eu era, e sou, todos os dias abordada na rua por pessoas que me diziam maravilhas do programa e que pedem um Rising Star II. É um programa moderno que teve vozes muito boas. Para mim, uma experiência gratificante que jamais vou esquecer. Em menos de três meses vivi todo o tipo de sensações, ri-me à gargalhada, fui feliz, comovi-me, fiquei triste, fui para casa preocupada com este ou aquele concorrente, liguei-me de corpo e alma ao projeto e fez-me crescer muito como pessoa. Foi muito bom estar do outro lado a poder aconselhar aqueles que começam como eu um dia comecei.
Não houve nada de negativo nesta aventura?
O programa foi sempre lÃder de audiências, não tenho mesmo noção nenhuma da falta de impacto. Ainda hoje me falam do programa positivamente… Não sei ao certo o que responder, porque não vivi essa falta de impacto. Não houve nada negativo, porque tudo o que é aparentemente negativo tem sempre um lado que nos faz pensar, parar, crescer e evoluir. Foi um desafio que adorei aceitar, uma experiência que vou levar para sempre no meu coração e que tenho saudades.
Ser júri pode ser muito gratificante, mas também tem o seu lado ingrato…
Ser júri tem um lado muito ingrato, principalmente com tantas vozes tão boas e sabendo que só uma vai ganhar. Obriga-nos à comparação e, sinceramente, não se comparam artistas, porque cada artista é como um instrumento musical único e incomparável. Escolher apenas um é duro, mas também nos faz conhecer-nos mais a nós próprios e aos nossos gostos, faz-nos ser honestos com o que sentimos e com a experiência que temos. Foi muito interessante.
Sempre foste muito honesta, apesar desse ar de menina.
Pois, eu tenho um ar de menina e sou uma pessoa muito sensÃvel. Ligo-me muito facilmente à arte, com comoção e nostalgia. Mas sou também uma mulher guerreira, determinada, lutadora e confiante. Sei exatamente o que penso e não tenho medo nem de arriscar nem de dizer o que sinto e penso, pois só assim nos sentimos seres humanos realmente livres e serenos. Acredito também que só assim somos realmente únicos, pois a diferença está na nossa essência.
Emocionaste-te várias vezes com algumas atuações. Temos aqui um coração de manteiga?
Temos, sem dúvida, uma pessoa que se emociona muito e muitas vezes com os momentos belos da vida e das pessoas.
Este formato revelou boas vozes?
Muito boas vozes. Não são só as vozes que precisamos, também é preciso saber fazer música e ter bom repertório e bons músicos, e isso sim é difÃcil. Mas estes programas têm sido bons para ajudar a lançar talentos em várias áreas, seja nos musicais, no teatro ou a solo.
E ser artista não é só ter boa voz.
Ser artista não é só ter voz. É a pessoa também, a forma como se está, como se fala, como se diz, como se trata os músicos, os técnicos, como se encara o sacrifÃcio o cansaço e, acima de tudo, a solidão. Vivemos com a nossa paixão e não há maior dom que esse. Mas cantar não é só cantar, cantar e crescer a cantar, é muito mais que isso. É como ser mãe, esquecemos-nos da dor em prol da alegria e do dom que o universo nos deu.
Que futuro prevês para o vencedor do programa, Bruno Correia?
Depende do que o vencedor fizer. Como dizia há pouco, ser artista nao é só ter voz. Através da voz também temos acesso à essência e à alma, mas à s vezes isso pode virar-se contra nós. Quem canta não mente e essa transparência e essa luz rara quando se encontra bate forte, muitas vezes não se encontra… É muito difÃcil. Como se diz, como se gere o ego, a confiança que se tem de ter para saber enfrentar todo o tipo de público… É muita coisa. DifÃcil explicar assim. É todo um caminho a percorrer… Sempre com muito para crescer, lado a lado com o crescimento interior da vida.
Um sonho bem guardado?
Poder cantar a cada dia. Não crio expectativas do que possa vir, vivo o presente e a cada dia agradeço as oportunidades que me foram dadas. Cantar é o meu sonho, todos os dias tenho tido a sorte de o poder realizar, dia a dia, passo a passo. É uma dádiva.
eduardo.lopes@atelevisao.com