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Despertar

A Televisão
16 min leitura

Despertar Despertar

O despertador tocou, irritantemente, como em todas as manhãs. Soraia pôs o braço de fora das mantas e, com toda a força de quem é arrancado inesperadamente de um sono, desligou-o, batendo com a sua mão no botão que ficava por cima do aparelho. Eram sete da manhã, de uma segunda-feira, e Soraia estava a começar a semana com uma sensação estranha…

Pôs a mão na cabeça e desceu-a até aos olhos, passando-a pelo rosto, à medida que se sentava na cama. Ficou sentada por alguns instantes, a querer lembrar-se do conteúdo do seu sonho que fora interrompido pelo maldito despertador. Sentia que estava prestes a ter uma revelação, uma resposta, um sinal. Mas do quê? De quem?

Uma hora depois, já estava a sair de casa, pronta para enfrentar o trânsito matinal e mais uma semana de trabalho. Às oito e meia tinha que “picar o ponto”, na Números & Companhia, a empresa de gestão e contabilidade onde trabalhava. Meia hora era o tempo que tinha para chegar ao trabalho, mas, ao começar a percorrer a Segunda Circular, percebeu logo que poderia chegar atrasada. O “tempo da chuva” mal tinha chegado e, naquela manhã cinzenta, a água que já tinha caído do céu fora a suficiente para originar um acidente rodoviário e entupir as estradas que davam acesso ao coração de Lisboa.

Soraia tinha entrado há pouco tempo na “casa dos trinta” e já trabalhava naquela empresa há cerca de cinco anos. Fora esta empresa a responsável por se ter mudado para a capital, depois de ter tirado o curso de Contabilidade na Faculdade de Economia de Coimbra. Ao longo da vida, fora sempre apelidada de “marrona” pelas excelentes notas que tinha, por ser estudiosa, por ser empenhada. Soraia não era propriamente uma mulher atraente, querendo sempre esconder-se atrás dos seus óculos graduados, mostrando assim a sua pouco auto-estima. Era nisso que estava a pensar quando decidiu tirar o telemóvel da mala, aproveitando que estava parada no trânsito, para fazer uma chamada.

– Estou? Filipa? Bom dia… Já estás a caminho do trabalho? – perguntou Soraia àquela que era, para além de sua colega de trabalho, uma amiga.

– Bom dia. Sim, já estou a ir trabalhar, mas para não variar estou parada no trânsito. Maldita hora de ponta! – Filipa nunca tinha problemas em se expressar, mesmo que fosse de mais. Apesar de lidar com os números todos os dias, as palavras não eram um entrave para si.

– Olha, eu também estou parada no trânsito… Não estarei atrás de ti?

Hummm… – olhou pelo visor – Não, não estás. Atrás de mim está um borracho com ar de solteirão! – riu-se.

– Lá estás tu… – riu-se, também.

– E ligaste-me só para saber onde ando? Vá, Soraia, conta lá o que te perturba… – Filipa estava mais do que habituada a ouvir a sua amiga, sempre com problemas existenciais e de auto-estima. Era, em suma, o seu ombro amigo.

Opá, é que hoje tive um sonho…

– E?!

– …E não sei como acabava!

– E achas isso preocupante?! Eu nem me lembro de todos os sonhos. Olha, e ainda bem! É sinal que dormi profundamente.

– Pois, mas eu sinto que preciso de saber como aquele sonho terminava… O problema é que eu nem me lembro com o quê que estava a sonhar! Isso nunca te aconteceu? Às vezes não tens aquela sensação estranha de quereres lembrar-te do teu sonho? Nunca tiveste aquela vontade inexplicável de te quereres lembrar porque era muito real, porque era importante, porque poderia dar-te uma resposta?

– Sim… mas esquece isso! Talvez não fosse nada de mais… – a Filipa desvalorizou.

– Olha, a fila voltou a andar. Falamos melhor lá no trabalho.

OK, até já.

Milagrosamente, ou não, o trânsito começou a diluir-se e a Soraia conseguiu chegar a horas ao trabalho. Estacionou o carro no parque privativo do edifício onde trabalhava e subiu até ao quinto piso de elevador. Quando estava a passar pelo rés-do-chão, as portas do elevador abriram-se e entrou o Rui, um colega de trabalho que a Soraia pouco comunicava. Trocaram os olhares, cumprimentaram-se com um simples “Bom dia” e sorriram, nervosamente, um para o outro, por gentileza. Soraia não se lembrava se alguma vez teria tido uma conversa com ele, sem ser de ocasião, pois não trabalhavam na mesma secção. Talvez já o tivesse visto a circular pela empresa. Talvez fosse só isso… Mal ela sabia que ele já tinha reparado em si!

Quando a Soraia entrou na sala do seu departamento, já lá estava a Filipa. Ambas trabalhavam lado a lado, em secretárias diferentes.

– Então, já te lembraste do sonho?

– Não, mas também não me sai da cabeça a necessidade de ter que me recordar… – disse Soraia à medida que pousava os seus pertences na sua secretária.

Oh, Soraia, os sonhos são isso mesmo, sonhos. Qual é a necessidade de nos lembrarmos deles? São puras fantasias, reflexos dos nossos desejos…

– Ou não! – interrompeu-a – Podem ser o juntar das peças do puzzle, a junção das imagens e dos sinais que no dia-a-dia nos falham à visão, mas que o nosso cérebro consegue captar.

– Andas a ler algum livro de auto-ajuda?!

– Mas que raio de ideia é essa?

– Andas muito filosófica… é só por isso!

– Olha, cala-te!

– Será que era um sonho erótico?! – Filipa sorriu.

– Não sejas parva! – Soraia não sabia se estava irritada ou se estava achar piada à conversa.

– O teu sonho podia ser o reflexo da tua vontade…

– Vou deixar de partilhar as minhas coisas contigo! – Soraia fingiu que amuava, ao mesmo tempo que a Filipa sorria e ria.

– Olha, mudando de assunto, quando vinha para aqui, cruzei-me no elevador com o Presidente daquela empresa de construção civil que temos de organizar a contabilidade… Bem, o homem fartou-se de falar e eu não lhe perguntei nada! Credo! Que chato! E ainda são só estas horas da manhã… nem quero imaginar ao fim do dia!

– Eu no elevador cruzei-me com aquele rapaz do… – Soraia calou-se. Ao mesmo tempo que começou a formar a frase que estava a proferir, várias imagens vieram à sua cabeça, formando uma sequência, revelando-lhe algo. – É isso… o sonho!

Oh, não! Não acredito que vamos voltar ao mesmo, logo agora que eu tinha mudado de assunto!

– Não estás a perceber, Filipa, eu lembrei-me do sonho! – disse Soraia, a sorrir, radiante.

Ufa, ainda bem! Estava a ver que não!

– Olha, se estiveres com essa atitude, não te conto nada! – Soraia sorria.

– Vá, conta lá. Agora estou curiosa!

– Estava a sonhar com aquele rapaz que trabalha no departamento do sexto andar…

– Espera lá! Estavas a sonhar com um homem… não era um sonho escaldante?

– Filipa! – Soraia chamou-a à atenção.

– Estava a brincar. – Filipa riu às gargalhadas – Continua lá…

– …Acho que era só uma conversa, com gestos de afecto e carinho. Eu estava a descobrir algo novo para mim, porque ele me estava a contar alguma coisa… Acho que era uma confissão! Não me lembro bem… Foi precisamente na altura em que ele ia falar que a porra do despertador tocou!

– Estamos mesmo a falar de quem? Como é que ele se chama?

– Rui… Acho que é Rui, não é?

– Bemmm… Ele não é o Brad Pitt, mas olha que também não és parva nenhuma! Ele deve ser o mais girinho do departamento dele!

Oh, Filipa, tens que estar sempre com essas conversas…

– Mas achas que o sonho pode ser real?!

– Não sei… – Soraia baixou a cabeça, ligeiramente desolada.

– Tens que descobrir! – Filipa parecia decidida, como se a grande revelação mudasse alguma coisa na sua vida.

– E como faço isso? Não tenho coragem para lhe perguntar, directamente.

– Não tens, mas vais arranjar! – Filipa olhou para o seu relógio de pulso – Daqui a cinco, dez minutos, eles costumam ir beber um café à Sala do Pessoal… Vai até lá e fala com ele. É esta a oportunidade.

– E se for tudo invenção da minha cabeça?

– Não foste tu que disseste que os sonhos são o juntar dos sinais que o nosso cérebro capta? Pode ser que seja verdade… e só o saberás se enfrentares os teus receios e tiveres vontade em descobrir a verdade. Tens essa vontade?

Soraia calou-se, por momentos, pensativa, mas respondeu:

– Sim, tenho essa vontade e quero descobrir a verdade. E é isso que vou fazer!

Cinco minutos depois, Soraia estava a entrar na Sala do Pessoal. Esta estava vazia e, para “fazer tempo”, tirou um café da máquina. Estava a mexer o açúcar quando, repentinamente, o Rui entrou na sala. Este viu-a e, timidamente, começou a recuar em direcção à porta, para não ter que a enfrentar.

– Espera! – disse Soraia.

Hummm… Vou só buscar um café. Não quero incomodar… – disse Rui, timidamente, entrando por completo na sala.

– Não incomodas nada… – pôs a chávena à boca e bebeu café.

Fez-se silêncio, na sala. Era constrangedor. O Rui estava nervoso, não sabia o que fazer ou dizer perante aquela presença feminina; Soraia não sabia se haveria de dar o primeiro passo e acabar com as suas dúvidas.

– Rui… hummm… – Soraia quebrou o gelo – É esse o teu nome, não é?

– Sim, é. Não fazia ideia que sabias o meu nome…

– Pois, sei… hummm… Ainda bem que te encontrei aqui. Queria falar contigo.

Ai, sim? Então, precisas de alguma coisa? É por causa de algum orçamento, de algum IRS…

– Não… não tem nada a ver com a empresa… é pessoal… hummm… – hesitou – Se calhar, é melhor esqueceres!

Soraia começou a caminhar em direcção à porta, para sair da Sala do Pessoal, mas, desta vez, foi ela que foi impedida.

– Espera! – o Rui impediu a separação. – Se calhar chegou a hora de termos essa conversa… É que eu sou mais dado aos números que às letras… não sou muito bom com as palavras e expressões… – sorriu, nervosamente.

– Eu também sou um bocado assim… – sorriu – Se preferires, começo eu, então…

– É melhor, sim. – Rui pôs à chávena à boca e, atrapalhadamente, bebeu café. Soraia fez um compasso de espera e poisou a sua chávena na banca da sala.

– O que eu tenho para te dizer pode ser ridículo, mas tenho que perceber o que se vai na minha cabeça… É que eu, esta noite, tive um sonho… Bem, isto pode parecer tudo muito estranho, mas tenho que saber até que ponto é que é verdade… – Soraia fez uma pausa e o Rui, para não ficar parado e a enfrentar com os olhos, poisou a sua chávena do café na banca – Eu sonhei que tu me estavas a dizer alguma coisa… Ou melhor, que entre carinhos e gestos de afecto, estavas prestes a revelar-me algo. Não consegui, foi, perceber o que tinhas para me dizer, pois entretanto acordei. Bem, sei que isto pode parecer ridículo, mas estou com tudo isto na cabeça desde que acordei… e não sei se, realmente, terás mesmo alguma coisa para me dizer…

O Rui sorriu e baixou a cabeça. Olhou para o chão na esperança de ter coragem para avançar.

– Como é possível que o teu inconsciente tenha ido buscar imagens que colmatassem a minha falta de coragem, a minha difícil capacidade de me exprimir? – o Rui tirou os olhos do chão – Já há muito tempo que o queria ter feito, mas… – fez uma pausa – Soraia, eu… eu… eu amo-te… hummm… Só imagino os meus dias ao teu lado. Compreendo que prefiras ignorar-me…

– Não digas isso! – interrompeu-o – Se me amas, avança. Não receies. O máximo que te poderá acontecer é levares um estalo… mas duvido!

O Rui não hesitou, aproximou-se da Soraia e beijou-a. Ela caiu-lhe nos braços, num beijo apaixonado, correspondido, de desejo há muito por saciar. Depois do primeiro, veio o segundo e o terceiro beijo. As confissões sucederam-se e, se não tivessem de ir trabalhar, teriam passado o dia naquela sala, entre carícias, beijos e promessas de amor. Ele viu o seu amor correspondido; ela sentiu que, finalmente, era amada… Aquele foi o primeiro de muitos dias de amor, paixão, companheirismo e de vida a dois. Foi o início de uma relação causada pela busca de uma resposta que o despertar de um sonho impediu de alcançar.

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